O sr. António das 3 bicas.

sexta-feira, 6 de julho de 2018


Já não tenho como vizinho o "meu" Sr  António. Sempre que lhe perguntava de que era a sopa do dia, respondia invariavelmente "É da boa!" enquanto nem esperava que aceitasse... No restaurante do Sr. António, se eu entrasse às 3 da tarde e pedisse uma sopa e uma sandes para levar, tinha sempre de resposta um "olhe lá menina, que para cuidar dos outros tem que cuidar de si... coma a sopinha devagar que senão nem a alimenta". Tinha sempre de companhia os mesmos moradores da zona, que me faziam sentir quase em casa... Os pratos do almoço quase não tinham salada, mas tinham hortaliça do seu quintal "tudo bem tratadinho sem coisa nenhuma", e os nomes das diárias eram do tempo dos meus avós, sem sementes de chia ou  qualquer preocupação com composição nutricional ou com a apresentação na travessa de inox ou prato de barro.
Conheci-lhe a voz forte que perguntava do lado de cá do balcão o que queriam os clientes da mesa do fundo sem ter que se levantar. Conheci-lhe a neta que por ali cirandava todos os dias quando os pais emigraram para a Suíça e ficou com os avós. Conheci-lhe a saudade da neta quando esta foi no ano seguinte ter com eles. Conheci-lhe as marcas e as cicatrizes na garganta que lhe tiraram a força da voz e o obrigaram a ir de mesa em mesa buscar os pedidos, mas que nunca mudaram a boa disposição e sorriso fácil. Passaram-se semanas em que já só estava a esposa para que pudesse descansar dos tratamentos em Coimbra. Depois regressava. "Estou como novo...!", e a lágrima pendurada e agarrada ao canto do olho a fazer tremer a voz que se ia esbatendo com o esforço.  As 3 bicas eram ali.
Há uns meses soube que teria de mudar de consultório em Leiria e estranhamente, apesar de nem conhecer bem a cidade para onde venho trabalhar todas as semanas, houve qualquer coisa que me fez querer ficar por perto daqui. Apenas mudei do 1o para o rés do chão e curiosamente houve uma imediata sensação de continuar em paz, onde me sentia em casa só por saber o nome do senhor que me servia o café. 
Agora não tenho quem o sirva, o papel de Trepassa-se na porta de vidro traz-me uma certa melancolia, venho para o consultório e ligo a máquina do café na sala de espera. 


Inês Vinagre. Com tecnologia do Blogger.

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